“Musicamorosa” reviewed by Bodyspace

Por altura de Essays on Radio: Can I Have 2 Minutes of Your Time?, compilação dedicada ao meio radiofónico lançada pela Crónica, bastaram a The Beautiful Schizophonic dois minutos para, através de um conto de fadas urbano, declarar uma sensação de enclausuramento e incapacidade de comunicar verbalmente: assim se sucedeu através do aproveitamento de um excerto do filme Lost in Translation em que a personagem Charlotte assumia, por insinuação e voz trémula, que a angústia a consumia à medida que se tornava mais óbvia a ruptura no (já de si escasso) diálogo sentimental que ia sustentando a relação entre ela e o seu namorado fotógrafo. Desta feita, Jorge Mantas, a mão que embala The Beautiful Schizophonic, decide-se por um empreendimento que pode contrariar o martírio existencial vivido por Charlotte: desbloqueia as vias da exteriorização munindo-se da poesia de Marcel Proust – servida subliminarmente em surdina (e nos títulos das faixas de Musicamorosa) – e de um drone que é cada vez mais a ciência pela qual deve ser ponderado a atribuição de um prémio Nobel ao autor que conhece, uma vez mais, edição da label Crónica.

Pode-se, primeiramente, até frisar os benefícios potenciais de Musicamorosa como disco em que os drones contínuos, apesar de por vezes estranhos, evidenciam a capacidade de resolver, em prol de gente com um apetite mais experimental, todos aqueles incomodativos impasses entre o aperto de mão e a consumação. É viável esperar tamanhos benefícios tónicos de um disco que, nas paisagens sonoras elaboradas, sabe conjugar componentes orgânicas e digitais enquanto gere o percurso climático de um momento ambiguamente sexual, muito à semelhança do que se encontrava latente no belíssimo Lisbon, gravado por Keith Fullerton Whitman na Galeria Zé dos Bois.

Em termos de processo, Musicamorosa resulta da examinação ponderada das propriedades de que pode um drone mais benigno usufruir se for sua intenção transparecer um estado emocional que procura um elevado encosto junto à graciosidade atmosférica dos Stars of the Lid ou Eluvium. Drone esse que conhece adequada companhia no esplendor pastoral da guitarra que, em “dans la chambre magique d’une sibylle”, se contém e depois extravasa uma acústica embrulhada, reforçando assim a ideia de que Musicamorosa ambiciona a exteriorização do sublime acumulado aos livros nas estantes e figuras femininas semi-nuas em quadros nas paredes, pretendendo também servir como complemento instrumental às confissões expostas no blog venusexaminaomeucoracao.blogspot.com, mantido pelo Jorge Mantas sob o disfarce do personagem romântico criado à medida deste universo.

Alguém como Madonna, que o mundo mais devasso conhece pela promiscuidade celebrada durante a fase Erotica / Na cama com…, escrevia no seu livro Sex que apreciava pillow talk quando bem feita. Musicamorosa satisfaz os requisitos afrodisíacos da mais desejável pillow talk, crendo que pode ser espremida poesia às tais falinhas mansas que se segredam intercaladamente na cama. Jorge Mantas adapta à sua vontade esse conceito de estímulo, silenciando a complicação dos recursos verbais e, dessa forma, simplificando a mensagem que mais desembaraçadamente transita sob a forma de linguagem universal de drones envolventes na sua fluência circular, frequências aurais que serviriam idealmente ao flirt telepático entre Charlotte e Bob Harris de Lost in Translation, sobreposições formadas em espiral que sumarizam a sexualidade cerebral conforme observada por Björk em “Enjoy”, produzida a meias com Tricky e incluída em Post. Tudo isto sem sequer deixar de parte a cortesia e permuta de situações – e o jogo daí resultante – que se descobre ao momento em que o herói romântico cede a palavra à musa Cécile Schott (mais conhecida por Colleen), para que ela – com toda a classe do continente Europeu – possa declamar Proust no seu próprio quarto em Paris.

Pelo título que escolhe para si, Musicamorosa quase suplica que decorram debaixo da manta os desenlaces a que incentiva por meio da sua estética declaradamente horizontal. E convenhamos que existe qualquer coisa de infinitamente nobre no poeta que exercita solitariamente a sua verve zeloso de que os outros possam aproveitá-la acompanhados. Até que alguém se decida a inventar uma quinta estação, não existe melhor temporada que o Outouno para testar intimamente a eficácia a essa bênção que mereceu o conveniente título de Musicamorosa.

Miguel Arsénio

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