“Product 03” reviewed by Bodyspace

Um cyber-vulcão expele uma lava composta por números binários numa média-metragem a preto e branco. Os compositores da banda-sonora dão pelo nome de Ok.Suitcase e Cáncer, e o estúdio responsável pelo lançamento é a Crónica – cada vez mais empenhada em promover electronica de qualidade, e merecedora da recente exposição de que tem vindo a gozar. Tal como o nome indica, Product 03 é o terceiro tomo da série Product. Sem complexos e com a magnificência de quem sabe bem o que quer e os meios para tal alcançar, faz-se crónica do processo criativo de dois novos talentos que fundem os seus contributos neste split CD que, em vez de reunir a arte de apenas duas partes, gera adicional interesse com a inclusão de um terceiro interveniente que faz deste disco um objecto triangular íntegro e inovador.

É Ok.Suitcase que enceta o delinear da figura geométrica. Além das múltiplas funções que acumula no projecto In Her Space, André Gonçalves explora, através do improviso e manipulação de som, novas sonoridades sob a designação de Ok.Suitcase. Mune-se da guitarra e recursos de laptop para pavimentar as suas texturas absorventes, assinalando a rota experimental com efeitos e samples (a abundarem em “04 0506-4” – vocalizações adultas vs. candura pueril de quem brinca no parque). 04 – a metade pertecente a Ok.Suitcase – propõe cinco exercícios que, por sua vez, ditam o direito à alegoria. Preenche o silêncio de uma manhã submersa no aeroporto da Portela ou um tortuoso final de tarde vivido em angústia. Efectua uma oscilação pendular entre a melancolia e o júbilo conforme o estado de espírito de quem o escuta. Foco apontado para os seus drones imensos e terceira faixa, prenhe de uma toada mais industrial minada por um crepitar incessante.

O caso de Cáncer é ligeiramente diferente. Ainda que quaisquer comparações sejam traiçoeiras, é notável que o projecto orientado pelo músico chileno evidencia maior maturidade, provavelmente devido à sua condição mais convencional e acessível. Incoherence Textures aquece motores em modo Thunderbirds (a febre voltou) com um loop à Boards of Canada a servir de combustível. O mote está lançado e a porção a cargo de Cáncer contrasta da inversa, desde o início, pelo tom lúdico que percorre as faixas, enquanto vários acrescentos – quase sempre beats discretos, lubrificados e epilépticos – vão sendo adicionados e subtraídos à estrutura sonora. As suas faixas valem-se de uma simetria e ressonância hipnóticas que acabam por resultar em algo de dançável. Todos sabemos que os músicos sul-americanos têm uma sensibilidade superior para lidar com o ritmo. Jorge Cortés prova que isso lhe corre no sangue, e consegue transpor esse talento nato para a sua música. “Corre” balouça como um ventre à luz da lua taitiana e a última faixa coloca a cereja no topo do bolo, deixando água na boca de quem, como eu, fica à espera de novidades do correspondente da Crónica em Santiago do Chile.

A concluir o triângulo, menção honrosa para o grafismo do mais impressionante booklet que me passou pelas mãos este ano. Se os pomposos vinis de Led Zeppelin deixam todos boquiabertos, não será menor o impacto provocado pela brilhante demonstração de criatividade da dupla InsertSilence que transforma o disco numa obra de arte e item de coleccionador a ter em conta. Após trabalhos efectuados para entidades tão diversas como Björk ou Nike, Amit Pitaru e James Paterson abençoam-nos com um conceito gráfico simplesmente assombroso e que vale o preço do disco por si só. Em ano de desmedido patriotismo, aqui fica mais um triunfo luso. Sinal verde para quem procura novos horizontes para os seus horizontes. Avançar sem preconceito.

Miguel Arsénio

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