O ritual repetia-se ocasionalmente. Quando, aos sábados, as cabeças andavam pelo ar e as garrafas de cerveja tinham já passado à condição de tara perdida, o mais necessitado dos “junkies†de ruÃdo ajoelhava-se perante um rádio Blaupunkt. Entre a testa contra as colunas e uma franja colada ao rosto, procurava pela mais enervante frequência AM e suplicava por “distorção ao máximoâ€. Podia até ali estar um John Cage ou um Damo Suzuki em estado embrionário, mas não. Viviam-se os anos de glória do fuzz e, sem disco da Sub Pop à mão, o pretenso criativo recorreu à rádio como último recurso para satisfazer a sua carência. Essays on Radio: Can I Have 2 Minutes of Your Time? – a compilação que comemora dois convertedores anos de Cronica – segue o percurso inverso: parte da rádio como pretexto para a exposição de trinta e nove exercÃcios metodicamente variados (e diversos nas perspectivas que proporcionam) em torno da matriz. As noites de sábado nunca mais serão as mesmas.
Numa altura em que é cada vez mais assinalável o fosso entre frequências submissas à ditadura das playlists e rádios (a maioria delas on-line) dispostas a tratar o ouvinte como um ser inteligente e não como uma esponja, a mentalidade de guerrilha volta a fazer sentido associada ao meio. Desde sempre disposta a desafiar bases instauradas, a Crónica proporciona dois minutos de antena a cada um dos locutores (prata da cada e convidados de honra). A oportunidade acaba por se revelar propÃcia a manobras de retaliação (tilia bombardeia sem clemência o discurso formatado de George Bush), reaplicação de matéria alheia (Cáncer pega nos samples de rádio que já conhecÃamos aos discos de Manu Chao e elabora o seu próprio spot publicitário), elegias a emissoras de elevado potencial nostálgico (Ran Slavin homenageia a década de 50 em “Golden Twilight Momentsâ€). Há glitch trepante (ou não fosse a rádio uma abundante fonte dessa matéria) e toda uma sectorização de frequências esventradas a ambos os extremos do audÃvel. Volta a Crónica a prestar serviço público na disponibilização de um formato que condensa uma memória tão incalculável quanto a da rádio.
As ondas hertzianas não precisam de passaporte. Parecia ser essa uma das reivindicações polÃticas dessa incontornável instituição da electrónica que dá pelo nome de Muslimgauze – palavra de código do entretanto falecido Bryn Jones. Isto porque em “Baghdad†(pertencente ao disco com o mesmo nome) se escutam várias lÃnguas – incluindo o português – conglomeradas numa conspiração a acontecer mesmo nas barbas da autoridade e censura. Um disco da Crónica aparenta quase sempre uma aura de clandestinidade gloriosa. Inteligentemente, a editora portuense desafiou os seus guerrilheiros a camuflarem-se com a duração conveniente a um sucesso de rádio (os tais dois minutos fáceis). Perante a digestibilidade do objecto, quem for “duro de ouvido†tem a tarefa facilitada e trinta e nova sintonias à escolha. Freddie Mercury tinha razão. Alguém ainda te ama, rádio.
Miguel Arsénio