“Happiness Will Befall” reviewed by Bodyspace

À boa e despreocupada maneira americana, o formato Disney ditou que as figuras desenhadas fossem automaticamente associadas a uma alegria sem fim e a circunstâncias cómicas. É contudo sabido que o tradicional filme Disney embriaga as criancinhas com momentos lúdicos e êxtase musical para, num momento de maior susceptibilidade, largar nas mãos do desprevenido questões tão perturbantes como a orfandade ou a exclusão. A Oriente as coisas mudam de figura e os desenhos enquadrados em séries de vinhetas (por lá chamam manga à banda desenhada e a coisa vende-se como pão quente) voltam a assumir a função primordial do manifesto por efeito de uma preocupação ecológica intrínseca à condição humana. Na primeira série de Dragonball, o Songoku parecia muito mais preocupado em salvar o mundo de um desastre cósmico do que em aviar porrada em vilões (posteriores) como o Cell ou o Bou-Bou.

Não tem qualquer culpa o herói de animação, ecologicamente consciente, de os seus pares ocidentais serem instrumentos ao serviço de armadilhas sentimentais que resgatam sal às lágrimas para ensopar o doce das pipocas. Pela mesma tabela, Lawrence English não tem de responder pelo mau nome que instituições como K.K. Null (com quem, de resto, Lawrence já colaborou) ou Lustmord (ele que recentemente gravou com os Melvins) deram à vertente mais obscura do ambient. Pode um disco ser denso, rarefeito e compenetrado sem que, por reacção, lhe seja associado um carácter pessimista (de quem antevê o fim de todas as coisas verdes). Happiness Will Befall corresponde à representação em disco de um itinerário introspectivamente reflectivo onde a luminosidade – mais tarde ou mais cedo – há-de surgir e proporcionar a clarividência a alguém imerso nas probabilidades inesgotáveis da guitarra, aqui multiplicadas pela sua interacção com texturas periféricas extraídas a electrónica diversa, cassetes e gira-discos adicionados ao vivo .

O primeiro disco de Lawrence English a ser editado pela Crónica documenta uma recente viagem do músico (por quatro países da região Ásia-Pacífico) em forma de atlas coordenado como se tratasse de um diário. Até porque a noção apurada da geografia é um traço comum a grande parte dos discos do compositor australiano, assim como não lhe é estranha a capacidade de assentar os discos sobre estruturas narrativas que habitualmente os sujeitam a serem entendidos como filmes imaginários. Por isso, Happiness Will Befall pode até ser um daqueles road movies onde o protagonista parte em descoberta de um familiar e acaba por dar com respostas para questões interiores. Lawrence English terá encontrado na sua viagem pela Ásia linguagens estranhas à sua (essencialmente assente na manipulação de um laptop) e paisagens cativantes que o terão moldado a peças como “Parallel (Midgap)” (à qual é quase possível perscrutar a violência da natureza). E porque Happiness Will Befall é também um disco sensível ao efeito do jet-lag sobre a força anímica, a sua faixa inicial – “Adrift” – permite escutar a desorientação a micromelodias à deriva. À medida que o disco se adapta às exigências do terreno (a nível respiratório, se quisermos), tornam-se cada vez mais perceptíveis as pulsações de um Lawrence English em permanente descoberta de padrões à área que avalia como um topógrafo.

Happiness Will Befall é mais um daqueles discos da Crónica que obriga a um número mínimo de audições até que se lhe comecem a descobrir os detalhes mais determinantes à sua resolução e aceitação. Por enquanto dispõe-se o disco a duas sugestões díspares: ou a Ásia encara esperançosamente o seu imparável crescimento populacional ou trata de se preparar depressa para receber o fim do mundo com um sorriso arqueado nos lábios. Em qualquer um dos casos, a felicidade deve andar à espreita.

Miguel Arsénio

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