Quantas narrativas já interrompeu o polegar que conduz o zapping? A disposição dos dedos – inquisidores na permanente selecção de matéria a assimilar – encarrega o polegar de colocar termo a um raciocÃnio de Miguel Sousa Tavares e, chegada a sua vez, o indicador de determinar o melhor destino a dar a uma faixa incluÃda num qualquer disco. Cabe depois ao subconsciente armazenar à sua maneira frases desconexas, extractos de violência gráfica, os riffs de um álbum percorrido apressadamente num ponto de escuta. Tilia, aliás Alexander Peterhaensel, tratou de reanimar memórias dispersas de um imaginário televisivo a preto-a-branco através da inserção eficiente de piano e minimalismo lapidado a preceito. Vous rêvez / vous ne rêvez pas reporta à puberdade da cor no pequeno ecrã. Representa uma espécie de Pleasantville (filme em que a cor ia surgindo conforme as personagens perdiam a inocência) filmado com rigor germânico.
O artista (…) conta já com um significante currÃculo na área das performances regidas pelo improviso, além das funções acumuladas na percussão e manipulação de sons de múltiplos projectos (entre os quais, os Lali Puna). Sempre atenta ao que de melhor vai gravitando na área da electrónica mais vanguardista, volta a Crónica a ter um papel determinante na exposição de recomendáveis talentos ao lançar Vous rêvez / vous ne rêvez pas, peça dividida em três partes que, somadas, alcançam a marca dos 30 minutos.
Pela forma como se revela conciso e auto-suficiente, Vous rêvez / vous ne rêvez pas é estruturalmente comparável a um haiku (forma poética japonesa composta por apenas três versos), intimo ao ponto de ser confessional. O seu hokku (primeiro verso do haiku) “…and coming back†dita a tendência dominante do restante poema por meio das pistas fornecidas pelo piano e desenvolvimento rÃtmico regulamentado pelos “clicks†e “cuts†da ordem. Recolhem aos lençóis o analógico e digital, que, ao intercalarem, dão forma a um terreno fronteiriço entre o sono e a lucidez de quem está desperto. Daà o tÃtulo do disco e a razão de ser daquela barra que o divide.
O primeiro disco de Tilia pela Crónica peca apenas por terminar logo após atingir o seu auge. Interrompe a sintonia no momento em que nos tem desarmados e à mercê do que o sonho possa vir a proporcionar. Sobra a vontade de que a meia-hora seja expansÃvel à duração de longa-metragem. E pensar que o dedo indicador pode tão facilmente ser carrasco de sonhos como este…
Miguel Arsénio